LITERATURA EM TEMPOS DE PANDEMIA XVIII


ROTINA
Maria do Rosário Bessas
Novamente encosto meu rosto na vidraça da janela. Lá fora a rua vazia, o asfalto cinza descansando à sombra dos prédios que circundam a rua. Nem um carro para quebrar o silêncio, nenhuma criança gritando nas calçadas ou pessoas atravessando apressadas, como era no ontem. De repente tudo ficou mudo lá fora. Na janela em frente, um rosto sombrio cruza o seu olhar com o meu. Um aceno tímido com a mão, um arremedo de um bom dia talvez. Também aceno a minha lentamente e a deixo cair de novo sobre o peitoril frio de mármore. Olho o céu e vejo nuvens negras chegando sorrateiras no horizonte. Não bastasse a tristeza que sem licença se alojou nos meus aposentos, lá fora o mundo também parece estranho, desbotado, carrancudo, como se também estivesse com medo de cada amanhã que pode não chegar. Procuro outros rostos em outras janelas. Alguns ainda estão lá, olhando o que falta na vida lá fora... E a manhã vai saindo de mansinho, deixando o sol brilhar mais forte, anunciando a tarde que preguiçosamente desperta. Hora de fechar as cortinas, voltar para a rotina estranha que me ronda. E assim, as horas passam, quase mortas diante de mim. Até que a noite chega e as luzes pouco a pouco vão se acendendo lá fora, enquanto se apagam nos meus olhos. Um último olhar pela janela para olhar o mundo lá fora. Continua o mesmo, apenas perdeu o colorido do dia. Olho para dentro de mim e sinto a mesma perda. Devagar, ajeito o travesseiro na cama e me aconchego para dormir. Tomara que meus sonhos venham despidos de medo. Guardo a minha solidão na gaveta, abraço minhas lembranças com carinho e vou... Amanhã será outro dia.

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